Em janeiro de 1970, o autor Plínio Marcos solicitou a revisão da peça “Dois Perdidos Numa Noite Suja” à Censura Federal em Brasília, devido ao vencimento do prazo de censura anterior. O pedido buscava obter uma nova licença para apresentações, mas a peça enfrentou múltiplos vetos ao longo do processo, refletindo a postura rígida do regime militar em relação a conteúdos que retratavam a realidade marginalizada e violenta das classes populares. A obra foi classificada como imprópria para exibição pública, com a censura destacando elementos considerados inadequados e subversivos, em desacordo com o perfil moralista do governo vigente.
No primeiro parecer, a censura analisou a peça como uma obra perturbadora, ao retratar a vida de personagens marginalizados em um ambiente de extrema degradação social e conflitos constantes. A narrativa de “Dois Perdidos Numa Noite Suja” acompanha dois homens em situação precária, explorando suas frustrações, suas violências cotidianas e a luta por sobrevivência. A obra foi avaliada como potencialmente desestruturante para o público, pois apresentava uma visão crítica e pessimista da sociedade brasileira, desafiando o discurso oficial de um país moralmente íntegro e economicamente promissor.
A linguagem foi um dos principais alvos da censura. O parecer destacou o uso de palavrões e expressões vulgares, características que foram interpretadas como corruptoras dos valores morais e inadequadas para o público jovem. A censura alegou que a obra poderia incitar questionamentos sociais indesejados, especialmente por utilizar a linguagem direta e crua das classes populares, gerando desconforto e uma identificação potencialmente perigosa do público com os personagens. O tom realista e agressivo do texto foi, assim, considerado um fator central para a negativa inicial da liberação.
Além disso, a censura enxergou na peça uma crítica subjacente ao sistema social brasileiro. Ao expor a violência estrutural, a desesperança e as relações de conflito entre os dois personagens principais, a obra foi interpretada como uma denúncia da exclusão social e das condições de vida precárias enfrentadas por muitos brasileiros. Para o regime, essa representação crítica da realidade brasileira podia abalar a imagem idealizada que o governo militar buscava promover, oferecendo uma narrativa que poderia questionar a ordem social e moral defendida pela ditadura.
Nos pareceres subsequentes, houve uma revisão parcial, que analisou o contexto artístico e cultural da peça, mas manteve o veto devido à persistência dos elementos considerados subversivos. A decisão final, registrada em pareceres posteriores, confirmou a proibição de apresentações públicas, sob a justificativa de que a obra não apenas não condizia com os valores morais do período, como também apresentava uma visão pessimista e provocativa da sociedade. Esse argumento foi utilizado para reforçar a necessidade de conter manifestações artísticas que pudessem estimular reflexões críticas ou questionamentos sobre as desigualdades sociais e o sistema vigente.
O processo de censura de “Dois Perdidos Numa Noite Suja” revela o conflito entre o teatro realista e o controle ideológico imposto pelo regime militar. Plínio Marcos, ao retratar com empatia e crueza a vida dos excluídos e suas lutas cotidianas, confrontava diretamente o discurso oficial. A obra, ao expor o que havia de mais marginalizado e vulnerável na sociedade brasileira, desafiava a censura ao reivindicar o direito de dar voz aos invisíveis e expor as falhas estruturais do país.
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