
Censura e Teatro na Ditadura: O Caso de “A Mandrágora”
A peça “A Mandrágora”, de Nicolau Maquiavel, foi submetida ao Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) em 1968 para avaliação de sua exibição pelo Teatro de Equipe, de Belo Horizonte. O texto original, escrito no século XVI, é uma sátira política que aborda a corrupção, o poder e a moralidade, elementos que sempre despertaram a atenção de regimes autoritários. Embora já houvesse registros anteriores de montagens permitidas da peça, essa nova submissão trouxe preocupações adicionais devido a alterações na tradução e no vocabulário utilizado.
Primeira Avaliação e Restrições Imediatas
Logo na análise inicial, a censura classificou a peça como imprópria para menores de 18 anos, justificando a decisão com base em seu conteúdo satírico e nas expressões utilizadas na nova versão. Os censores observaram que, embora “A Mandrágora” fosse um texto clássico da dramaturgia mundial, sua linguagem e temática poderiam influenciar negativamente o público jovem. Essa decisão seguiu um padrão comum da época, no qual obras de forte teor crítico eram enquadradas em faixas etárias restritivas, limitando seu alcance.
Exigências de Cortes e Revisões do Texto
Após essa primeira avaliação, foram indicadas alterações obrigatórias no texto antes da liberação definitiva. O relatório do censor José Braga, emitido em novembro de 1968, identificou palavras consideradas inadequadas para os padrões morais e linguísticos do regime. Entre os termos que deveriam ser removidos estavam “frescura” e “porra”, expressões vistas como vulgares e potencialmente ofensivas.
Essa prática da censura era comum e fazia parte de um controle rigoroso sobre a linguagem utilizada nas artes cênicas. Mesmo quando um texto não apresentava elementos explicitamente políticos, os censores impunham modificações na linguagem para adequá-lo ao que consideravam ser uma norma moral aceitável.
Além dos cortes, a censura determinou que um ensaio geral deveria ser supervisionado por representantes do SCDP antes da estreia oficial. Essa exigência visava garantir que as alterações exigidas fossem fielmente implementadas e que a peça não contivesse elementos subversivos que pudessem ter passado despercebidos na análise textual.
Parecer Final e Condições para a Liberação
O parecer final do Serviço de Censura, assinado pelo censor Aloysio Muhlethaler de Souza, confirmou a autorização da peça, mas com condições rigorosas. A montagem só poderia ser exibida ao público se as modificações fossem cumpridas integralmente, e qualquer tentativa de restaurar o texto original ou inserir novos trechos sem aprovação poderia resultar na suspensão da licença.
Outro ponto relevante no parecer foi a reafirmação de que, mesmo com os cortes, a peça continuaria com a classificação indicativa de 18 anos. A censura considerava que a combinação de sátira política e linguagem crítica da obra de Maquiavel poderia influenciar negativamente espectadores mais jovens, razão pela qual a limitação etária foi mantida.
Conclusão: A Censura de Clássicos e o Controle Ideológico
O caso de “A Mandrágora” ilustra como o regime militar brasileiro aplicava a censura não apenas em textos modernos e explicitamente políticos, mas também em obras clássicas. O temor de que o público pudesse interpretar a peça como uma alegoria para a realidade política da época levou a restrições e exigências de cortes que, embora pudessem parecer sutis, faziam parte de uma estratégia maior de controle ideológico.
Mesmo um texto do século XVI, originalmente voltado para criticar a corrupção e os jogos de poder na Florença renascentista, foi tratado com cautela pelo regime, evidenciando o medo do governo militar diante de qualquer produção artística que pudesse incentivar o questionamento e a reflexão crítica sobre a sociedade e suas estruturas de poder.
A peça foi liberada sob vigilância, e a necessidade de ensaios supervisionados reforça a tentativa constante da censura de manter o controle sobre a mensagem transmitida pelas artes. Esse episódio se soma a diversos outros em que obras consagradas foram alvo de restrições, demonstrando que, para o regime, a censura não era apenas uma ferramenta de repressão, mas também uma forma de restringir o acesso ao pensamento crítico e à livre interpretação.
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