A peça “O Pagador de Promessas”, escrita por Dias Gomes, enfrentou múltiplos processos de censura entre 1968 e 1979, devido ao seu teor crítico em relação à intolerância religiosa e às estruturas de poder institucionalizadas. O enredo, que gira em torno da jornada de Zé-do-Burro, expõe as contradições entre fé popular, sincretismo religioso e a autoridade da Igreja Católica, elementos que foram considerados desafiadores pelos censores do período.
A trama retrata Zé-do-Burro, um homem simples que, após a recuperação de seu burro Nicolau, cumpre uma promessa feita à divindade Iansã em um terreiro de candomblé, carregando uma cruz até a igreja de Santa Bárbara. No entanto, sua devoção é rejeitada pelo padre local, que considera a promessa inadequada e herege por estar associada a práticas afro-brasileiras. A narrativa apresenta uma forte crítica à intolerância religiosa e à hipocrisia das instituições religiosas, colocando Zé como símbolo de fé sincera e confronto às rígidas normas do catolicismo oficial.
A peça foi alvo de intensas análises e restrições devido à sua abordagem sensível sobre temas religiosos e sociais. Os censores destacaram os seguintes pontos de preocupação:
- Crítica às Instituições Religiosas: A figura do padre Olavo é retratada como rígida e intolerante, desafiando a ideia de que a Igreja Católica deveria ser a única autoridade espiritual legítima.
- Sincretismo Religioso e Valorização do Candomblé: O destaque positivo dado ao candomblé e à divindade Iansã foi visto como uma afronta à hegemonia católica, especialmente por retratar práticas afro-brasileiras como equivalentes espirituais às tradições cristãs.
- Empatia com Zé-do-Burro: O protagonista, ingênuo e fervoroso, desperta identificação no público, desafiando as normas religiosas oficiais e incitando questionamentos à hierarquia moral.
Os censores consideraram que a peça “poderia ferir a moral cristã e incentivar reflexões subversivas”, utilizando como justificativa a preocupação com o impacto social e político da obra.
Os processos de censura limitaram a exibição da peça em diversas ocasiões. Em alguns casos, ela foi completamente proibida, enquanto em outros, foi exigida a remoção ou alteração de passagens específicas que abordassem diretamente o candomblé ou críticas explícitas à Igreja. Os censores rotularam a obra como potencialmente perigosa para a ordem moral e pública, devido à sua capacidade de promover empatia com figuras marginalizadas e questionar os valores dominantes.
A censura não apenas restringiu a circulação da peça, mas também impôs monitoramento rigoroso de ensaios e apresentações. A supervisão visava garantir que nenhuma cena ou diálogo desafiador escapasse ao controle ideológico estabelecido pelo regime.
Dias Gomes defendeu sua obra como um retrato autêntico das tensões sociais e culturais brasileiras, destacando que a peça abordava a fé popular e as dificuldades enfrentadas por indivíduos que transitam entre tradições religiosas diversas. Ele argumentou que a crítica contida na peça não era uma afronta às crenças religiosas, mas uma reflexão sobre preconceitos e intolerâncias perpetuados pelas instituições.
Grupos teatrais também resistiram à censura, negociando para reduzir ou ajustar trechos específicos sem comprometer a essência da narrativa. Apesar das restrições, “O Pagador de Promessas” continuou a ser uma obra emblemática do teatro brasileiro, sendo eventualmente adaptada para o cinema, onde alcançou reconhecimento internacional.
A censura imposta à peça reflete o controle autoritário sobre as manifestações culturais no período da ditadura militar. Representações de religiões afro-brasileiras e críticas à Igreja Católica eram frequentemente vistas como ameaças à ordem pública e ao status quo. O caso de “O Pagador de Promessas” evidencia como o teatro, mesmo em sua função de explorar narrativas sociais e humanas, era submetido a um rígido controle ideológico.
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