A peça “O Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, foi submetida à censura em diversas ocasiões, refletindo o embate entre o teor satírico e político da obra e as normas ideológicas impostas pelo regime vigente. Desde sua primeira avaliação, a peça foi classificada como “imprópria para menores de 18 anos”, em razão de suas críticas contundentes à estrutura capitalista, às instituições nacionais e ao imperialismo estrangeiro. O parecer oficial justificou que as críticas explícitas contidas na obra poderiam ofender valores políticos e sociais defendidos pelo regime, além de representar uma potencial ameaça à ordem vigente.
No primeiro parecer, emitido em 1977, a censura descreveu a peça como uma crítica feroz e satírica às estruturas sociais e políticas brasileiras, expondo com brutalidade as contradições do capitalismo e da elite nacional. A narrativa gira em torno de Abelardo, um agiota que acumula riqueza explorando seus clientes por meio de juros abusivos, retratando de maneira crua e irônica o parasitismo da classe dominante. Abelardo se casa com uma jovem de uma família decadente, num movimento cínico para legitimar sua posição social, utilizando o casamento como metáfora da simbiose entre decadência moral e ascensão financeira.
A censura chamou atenção para os temas sensíveis explorados na obra, como a decadência moral da elite, a dependência econômica do capital estrangeiro e a crítica aberta ao imperialismo. Personagens simbólicos da peça foram interpretados como representações de figuras de poder, carregadas de corrupção e exploração econômica, o que foi visto como um ataque direto aos valores políticos e sociais defendidos pelo regime militar. Além disso, a obra foi considerada ofensiva ao patriotismo e aos valores religiosos, ao questionar de maneira satírica a identidade nacional e os ideais de moralidade propagados pelo governo.
Outro ponto crítico apontado no parecer foi a linguagem agressiva e direta utilizada por Oswald de Andrade, considerada inadequada para os padrões morais e políticos da época. Os diálogos exploram abertamente a hipocrisia social, o parasitismo da elite brasileira e a corrupção institucional, relacionando a situação do país à dependência colonial e ao domínio do capital estrangeiro. Os censores expressaram preocupação de que o conteúdo poderia instigar revolta nos espectadores, ao expor de forma tão incisiva as falhas estruturais da sociedade brasileira e ao desafiar os valores defendidos pelo regime.
Como resultado dessa análise inicial, a Divisão de Censura optou por vetar a peça em sua totalidade, recomendando alterações profundas no conteúdo para amenizar as críticas. A peça foi considerada perigosa não apenas pelo seu caráter artístico, mas também pelo seu potencial de mobilização crítica, o que motivou o veto e a exigência de moderação.
Em 1980, após uma nova revisão, o Conselho Superior de Censura decidiu liberar a peça para exibição, porém mantendo a restrição de idade para maiores de 18 anos. Essa decisão refletiu um consenso cauteloso, reconhecendo o valor artístico e cultural da obra, mas mantendo a necessidade de controle sobre o público. Uma atualização posterior, em 1982, reafirmou a liberação da peça com as mesmas restrições, destacando que, embora o conteúdo permanecesse crítico e provocador, ele havia sido enquadrado dentro das normas censórias vigentes.
O processo de censura de “O Rei da Vela” revela a tensão entre arte e controle político durante a ditadura militar brasileira. A obra, com seu tom ferozmente satírico e suas críticas à exploração capitalista e à elite nacional, desafiava abertamente os discursos ideológicos do regime.
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